15.7.14

Homossexualidade indígena no Brasil: desafios de uma pesquisa

Estevão Rafael Fernandes
Professor da Universidade Federal de Rondônia
Doutorando em Estudos Comparados sobre as Américas
Universidade de Brasília



Este texto busca levantar alguns dos questionamentos que tenho elaborado desde que escolhi como tema de pesquisa o ativismo homossexual indígena no Brasil a partir de uma perspectiva comparada com os Estados Unidos. Na verdade, tratam estas reflexões justamente do que eu não tenho encontrado na literatura e como, a partir disso, minhas preocupações analíticas vêm tomando corpo.  
 Ao longo da pesquisa tenho observado que há, no Brasil, diversas referências a sexualidades indígenas operando fora do modelo heteronormativo desde a colonização. Autores como Mott (2011), por exemplo, trazem inúmeros exemplos de como o “pecado nefando” e a “pederastia” eram algo relativamente comum entre os indígenas: os Tupinambá chamariam de tibira aos homens e deçacoaimbeguira às mulheres que fossem o que se chamaria hoje de “homossexuais” (adiante problematizarei isso, inclusive o título que dei a este texto); entre os Guaicurus eles seriam chamados cudinhos, entre os Mbya,guaxu; entre os Krahò, cunin; entre os Kadiwéu, kudina; entre os Javaé,hawakyni; e assim por diante. Vários antropólogos (Wagley, 1977; Clastres, 1995,2003; Lévi-Strauss, 1996; Gregor, 1985; Murphy, 1955; Métraux, 1948; Darcy Ribeiro, 1997; para citarmos apenas alguns) mencionariam, ainda que en passant em suas etnografias, práticas que seriam classificadas a primeira vista como “homo” ou “bissexualidade”[i].
 Ao longo da pesquisa, noto que esse mapeamento de práticas e autores traz uma série de implicações (epistemológicas, políticas, conceituais, etc.) que compensam um esforço de sistematização como o que se pretende este artigo.
 Em primeiro lugar, termos como bi, homo, trans, etc., não são unívocos, nem política ou epistemologicamente neutros. Práticas como a masturbação entre cunhados, ou o sexo anal ocasional em caçadas e rituais não podem ser percebidos como práticas homossexuais sem problematizações. Tampouco a simples tradução das práticas percebidas como “sexualmente desviantes” para termos indígenas (como feito acima) dá conta da complexidade analítica que a questão implica. Nesse sentido, e seguindo aqui o que escrevem os ativistas two-spirit (ver adiante a explicação sobre tal termo), talvez seja mais produtivo pensar em termos de “queer indígena”, uma vez que tal perspectiva deslocaria o foco analítico das práticas, em si, e colocaria em evidência as relações de poder que historicamente moldaram a heterossexualidade compulsória a que os indígenas foram submetidos.
 Justifico entretanto o mapeamento dessas condutas pelo interesse em mostrar como tal conjunto de práticas era comum em sociedades indígenas brasileiras, sem que houvessem estigmas sobre essas pessoas por parte de seu grupo. Tem sido bastante comum, ao longo da realização do trabalho de campo – realizado desde 2012 junto a indígenas e órgãos do governo responsável pela gestão da política indigenista no Brasil, além de setores dos movimentos indígenas e homossexuais no Brasil e nos Estados Unidos -; ouvir que casos de homo/bi/transexualidade nas aldeias existem por conta da “perda de cultura” ou da “depravação advinda do contato”. Contudo, há várias fontes apontando para um papel espiritual central desempenhado por esses indivíduos em suas aldeias: o que os missionários e colonizadores percebiam como uma depravação era, muitas vezes, percebido como potencial xamânico pelos indígenas. 
Assim, a experiência indígena norte-americana é bastante interessante. Lá, como cá, sexualidades fora do modelo predominante foram também perseguidas por portugueses, ingleses, franceses e espanhóis. Diversas denominações foram utilizadas para se referir a esses indígenas, quase sempre com uma forte carga estigmatizante (“berdache”, por exemplo, termo de uso corrente até bem recentemente entre antropólogos, tem sua origem em uma expressão árabe, que se refere ao menino submetido a relações de pederastia). Ao longo dos anos 80, quando os indígenas começam a ser infectados com HIV e retornam às suas aldeias para morrer com suas famílias são, em princípio, rechaçados por sua comunidade. De um modo geral, a acusação era de que eles seriam soropositivos por serem “degenerados”, uma vez que teriam abandonado suas culturas e se tornado gays, devido ao contato com o não-indígena. Sua resposta viria como uma crítica ao aparato colonial moldada a partir de uma identidade pan-indígena e amparada por um discurso espiritual. 
Em sua própria visão, eles não teriam abandonado suas culturas, ao contrário, seriam parte de uma tradição de diversos povos nativo-americanos de pessoas two-spirit - em uma tradução livre, aquele/a com dois espíritos. Assim, eles não seriam “gays”, mas pessoas de dois espíritos (de homem e de mulher), estando em transição entre os dois mundos: masculino e feminino, espiritual e terreno, indígena e não-indígena, o que lhes garantiria um papel de destaque em seus povos. Um exemplo disso seria We’wha, indígena Zuni que chegou a encontrar-se com o presidente Grover Cleveland no final do século XIX, passando seis meses em Washington. 
Assim, na década de 80 surgem diversas organizações two-spirit no Canadá e nos Estados Unidos e, em 1990, após um encontro em Winnipeg, esse/as indígenas passam a rechaçar qualquer outra denominação (como “berdache”, por exemplo). Na prática, isso significaria mais que uma simples mudança de denominação: assumir-se como dois espíritos não apenas focava no papel espiritual da pessoa (e não em suas práticas sexuais) como também significa uma crítica ao processo de colonização: parte considerável dos escritos produzidos por autores e ativistas two-spirit se assenta na análise e crítica aos processos de colonização que os estigmatizaram. 
Além disso, essas lideranças se viam diante do desafio de se consolidar como grupo autônomo e com agenda própria, estando à margem dos movimentos indígena e LGBTIQ[ii]. Cabe notar que o movimento indígena não lhes dava espaço, por serem homo/bi/transexuais; tampouco o movimento LGBTIQ lhes dava voz, por serem indígenas. Mais recentemente, contudo, várias obras de autores e ativistas two-spirit vêm sendo publicadas e parte considerável dos estados dos Estados Unidos e Canadá contam já com organizações two-spirit. 
Nesse sentido, em um primeiro momento, minhas preocupações analíticas partiam da pergunta: “por que nos Estados Unidos e Canadá houve condições para um movimento continental, a partir de um discurso tradicional e de uma identidade pan-indígena em torno dessas sexualidades indígenas enquanto que, no Brasil, o fenômeno é enxergado (quando é) como perda cultural?”. Dito de forma mais direta: “por que lá sim e aqui não?”. Evidentemente que tais pontos de partida funcionaram como pontos de partida e só. Definir o movimento no Brasil pela falta, ou supervalorizar a iniciativa dos indígenas norte-americanos é algo que apenas reforça relações de poder e um modelo de Estado que nada tem a ver com o nosso. Lá, há uma solução que funciona lá, ponto final. 
Assim, a pergunta fundamental parece ser: para que desafios essas questões, trazidas aqui, apontam? Penso que elas nos impelem a repensar nossas próprias ferramentas analíticas e conceituais. O que tais processos nos permitem compreender sobre a própria articulação interna aos movimentos indígenas, movimentos LGBTIQ, academia, OnGs e Governo? De que maneiras podemos abordar essas questões sem que limitemos a diversidade de processos aqui descritos – mesmo que resumidamente – em nossa interpretação? Aspas – como chamar esses fenômenos de “homossexualidade”, ou “queer indígena” – bastam, ou é necessário repensarmos mesmo os paradigmas que perpassam essas categorias e outras, como “identidade”, “ativismo”, “movimentos sociais”, “poder”, “gênero”, “sexualidade”, “colonização”, para citarmos apenas algumas? 
Diversos elementos vêm surgindo no trabalho de campo[iii]: quais as implicações, para gestores em saúde, da demanda de um indígena que recentemente entrou com pedido para uma cirurgia de mudança de sexo? Lideranças travestis assumem sua sexualidade em suas relações fora da aldeia mas, dentro do movimento indígena, não tocam no tema. O que tais fatos nos permitem compreender sobre a forma de articulação desses indivíduos com os movimentos indígenas e com as organizações não-indígenas? Encontrei também o caso de um grupo indígena que tem seu próprio time de futebol de indígenas homo/bi/trans. Como essa realidade opera em termos de relações de poder dentro da aldeia, uma vez que se trata de um grupo – neste caso específico – vitimizado por preconceitos nas relações cotidianas? Em outro povo, registro grupos de indígenas que, se percebendo como sexualmente diferentes do restante do grupo, criaram padrões próprios de pintura corporal. 
Evidentemente que cada um desses casos citados acima possui especificidades e desafios analíticos próprios mas, em termos comparativos, eles nos servem para interpretação antropológica? A busca por tal resposta é, no mínimo, instigante. 

Referências Bibliográficas
 BALDUS, Herbert. 1937. Ensaios de etnologia Brasileira. São Paulo, Rio de Janeiro, Recife: Companhia Editora Nacional. 
CLASTRES, Pierre. 1995. Crônica dos Índios Guayaki: o que sabem os Aché, caçadores nômades do Paraguai. Rio de Janeiro: Ed.34. 
_____. 2003. A sociedade contra o Estado: pesquisas de Antropologia Política. São Paulo: Cosac & Naify. 
D’ABEVILLE, Claude. 1945. História da Missão dos Padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras circunvizinhas; em que se trata das singularidades admiráveis e dos costumes estranhos dos índios habitantes do país. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora.
 FERNANDES, Estevão R. “Ativismo homossexual indígena e decolonialidade: da teoria queer às críticas two-spirit”. 37º Encontro Anual da ANPOCS, SPG 16 Sexualidade e gênero: espaço, corporalidades e relações de poder. Águas de Lindoia, SP, de 23 a 27 de setembro de 2013. 
_____. “Homossexualidades indígenas e decolonialidade: algumas reflexões a partir das críticas two-spirit”. Tabula Rasa (Colômbia). 2014. No prelo.
 GANDAVO, Pero de Magalhães de. 1858. História da Província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos BrasilLisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias.
 GREGOR, Thomas. 1985. Anxious pleasures: the sexual lives of an Amazonia people. Chicago: University of Chicago Press.
 LÉRY, Jean de. 1941. Viagem à terra do Brasil. São Paulo. Livraria Martins.
 LÉVI-STRAUSSClaude1996. Tristes Trópicos. São Paulo: Companhia das Letras. 1996.
 MAGALHÃES, Couto de. 1876. “Parte II: Origens, costumes e região selvagem”. O Selvagem. Rio de Janeiro: Typographia da Reforma.
 MÉTRAUX, Alfred. 1948. “Ethnography of the Chaco”. In: J. H. Steward (Ed). Handbook of South American IndiansVol 1. The Marginal Tribes. Smithsonian Institution Bureau of American Ethnology. Bulletin 143. Washington: United States Government Printing Office.
 MURPHY, Robert; QUAIN, Buell Quain. 1955. The Trumaí Indians of Central BrazilSeattle & London: University of Washington Press.
 MOTT, Luiz. 2011. “A homossexualidade entre os índios do Novo Mundo antes da chegada do homem branco”. In: Ivo Brito et al. Sexualidade e saúde indígenas. Brasília: Paralelo 15.
 NÓBREGA, Manuel da. 1931. Cartas do Brasil (1549-1560). Rio de Janeiro: officina Industrial Graphica.
 RIBEIRO, Darcy1997. Confissões. São Paulo: Companhia das Letras.
 ROSÁRIO, José Manuel. 1839. História dos índios cavalleiros, ou da nação guaycurú, escripta no real presídio de Coimbra por Francisco Rodrigues do Prado – Trasladada de um manuscripto offerecido ao Instituto pelo Socio Correspondente José Manuel do Rosário”. Revista do Instituto Histórico e Geographico do Brazil, Tomo I, n. 1, 1º trimestre.
 SOUSA, Gabriel Soares de. 2000. Tratado descritivo do Brasil em 1587; edição castigada pelo estudo e exame de muitos códices manuscritos existentes no Brasil, em Portugal, Espanha e França, acrescentada de alguns comentários por Francisco Adolfo de Varnhagen. Belo Horizonte: Editora Itatiaia.
 THEVET, André. 1944. Singularidades da França Antarctica: a que outros chamam de América. São Paulo: Companhia Editora Nacional.
 WAGLEY, Charles. 1977.  Welcome of Tears. Oxford University Press.
  

Estevão Rafael Fernandes
 Professor da Universidade Federal de RondôniaDoutorando em Estudos Comparados sobre as AméricasUniversidade de BrasíliaCurriculo Lattes



[i] Infelizmente, por uma questão tanto de estratégia de análise quanto de espaço não poderei aqui problematizar ou contextualizar da forma devida – e merecida – as menções que tais autores fazem sobre o tema, mesmo por ser algo ainda em desenvolvimento na confecção da minha tese. Posso adiantar, contudo, que tanto os etnólogos mencionados (incluindo outros, como Baldus, 1937; Couto de Magalhães, 1837; e Rosário, 1839) quanto os cronistas e missionários que abordam o tema (D’Abeville, Gandavo, Léry, Nóbrega, Thevet e Soares de Sousa) não problematizam a questão nem a inserem no corpuscosmológico ameríndio. Além disso – e como exponho a seguir – quase sempre esses autores não fazem maiores distinções em se tratando de terminologia, utilizando-se de “sodomia”, “nefando”, “homossexualidade”, “berdache”, etc., como se fossem termos sinônimos ou intercambiáveis, sem maiores problematizações. Se, por um lado, tal imprecisão oferece um problema ao pesquisador no que diz respeito à comparação e à análise, por outro, fornece uma outra possibilidade analítica, por colocar em questão o lugar de enunciação dessas fontes. Contudo, como assinalei, trata-se de um tema complexo cujo espaço e escopo, lamentavelmente, escapam a este texto.
[ii] Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transgêneros, Transexuais, Intersexuais e Queer. Vale notar que alguns intelectuais, ativistas e estudiosos cada vez mais vêm incorporando à sigla os 2-spirit, resultando na sigla LGBTIQ2
[iii] Agradeço aos pareceristas e editores da Novos Debates por me chamarem a atenção para um ponto nos exemplos que se seguem neste parágrafo: de que cada uma das realidades que aponto possui especificidades e dinâmicas próprias e, da forma como os dados são apresentados no texto a sensação que se tem é que tais dinâmicas são suprimidas ou omitidas. Justifico, contudo, minha estratégia de apresentação dos dados por: a) uma questão de espaço, condição inerente a estratégia de se apresentar dados e reflexões em artigos – neste sentido espero dar conta de expô-los mais apropriadamente na apresentação final da pesquisa e em textos em preparação; b) de ética, posto que opto pelo anonimato de indígenas e respectivas etnias para salvaguardar os entrevistados (indígenas, lideranças, servidores de órgãos públicos, representantes de movimentos sociais, etc.); e c) epistemológica, pois me proponho a pensar justamente o processo político implicado nas relações coloniais e de colonialidade (incluindo tutela, políticas de integração, missões, etc.) que levaram a uma heterossexualização indígena. A/ao leitor/a mais interessado/a, inquietações aqui apresentadas devem ser compreendidas como complementares a dois textos (Fernandes 2013 e Fernandes, 2014), onde alguns dados são mais bem trabalhados.
 Replicado de

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