"Tão longe quanto me recordo, desejar rapazes é desejar relações com rapazes. E isso foi sempre, para mim, algo importante. Não forçosamente sob a forma do casal, mas como uma questão de existência: Como é possível para homens estarem juntos? Viver juntos, compartilhar seus tempos, suas refeições, seus quartos, seus lazeres, suas aflições, seu saber, suas confidências? O que é isso de estar entre homens "nus", fora das relações institucionais, de família, de profissão, de companheirismo obrigatório? É um desejo, uma inquietação, um desejo-inquietação que existe em muitas pessoas.
(...)
Há um livro que apareceu nos EUA sobre a amizade entre as mulheres (Faderman, L. Surpassing the Love of Men. New York: William Marrow, 1980). É muito bem documentado a partir de testemunhos de relações de afeição e paixão entre mulheres. No prefácio, a autora diz que ela havia partido da idéia de detectar as relações homossexuais e se deu por conta de que essas relações não somente não estavam sempre presentes, mas que não era interessante saber se se poderia chamar a isso de homossexualidade ou não. E que, deixando a relação desdobrar-se tal como ela aparece nas palavras e nos gestos, apareceriam outras coisas bastante essenciais: amores, afetos densos, maravilhosos, ensolarados ou mesmo, muito tristes, muito obscuros. Este livro mostra também em que ponto o corpo da mulher desempenhou um grande papel e os contatos entre os corpos femininos: uma mulher penteia outra mulher, ela se deixa maquiar e vestir. As mulheres teriam direito ao corpo de outras mulheres, segurar pela cintura, abraçar-se. O corpo do homem estava proibido ao homem de maneira mais drástica. Se é verdade que a vida entre mulheres era tolerada, é somente em certos períodos e a partir do séc. XIX que a vida entre homens foi, não somente tolerada, mas rigorosamente obrigatória: simplesmente durante as guerras.
Igualmente nos campos de prisioneiros. Havia soldados, jovens oficiais que passaram meses, anos juntos. Durante a guerra de 1914, os homens viviam completamente juntos, uns sobre os outros, e, para eles isso não era nada, na medida em que a morte estava ali; e de onde finalmente a devoção de um ao outro, o serviço feito era sancionado por um jogo de vida e morte. Fora algumas frases sobre o coleguismo, sobre a fraternidade da alma, de alguns testemunhos muito parciais, o que se sabe sobre furacões afetivos, sobre essas tempestades do coração que puderam haver ali nesses momentos? E alguém pode perguntar o faz que nessas guerras absurdas, grotescas, nesses massacres infernais, que as pessoas, apesar de tudo, tenham se sustentado? Sem dúvida, um tecido afetivo. Não quero dizer que era porque eles estavam amando uns aos outros que continuavam combatendo. Mas a honra, a coragem, a dignidade, o sacrifício, sair da trincheira com o companheiro, diante do companheiro, isso implicava uma trama afetiva muito intensa. Isto não quer dizer: "Ah, está aí a homossexualidade!" Detesto este tipo de raciocínio. Mas sem dúvida se tem aí uma das condições, não a única, que permitiu suportar essa vida infernal em que as pessoas, durante semanas, rolassem no barro, entre os cadáveres, a merda, se arrebentassem de fome; e estivessem bêbadas na manhã do ataque."
De l'amitié comme mode de vie. (trechos de) Entrevista de Michel Foucault a R. de Ceccaty, J. Danet e J. le Bitoux, publicada no jornal Gai Pied, nº 25, abril de 1981, pp. 38-39. Tradução de wanderson flor do nascimento.
enviada a mim por minha amiga Nuccia
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