2.4.14

Golpe contra a sexualidade

LGBTs foram alvo privilegiado da ditadura brasileira e são parte fundamental da reinvenção democrática. 

A ditadura civil-militar brasileira (1964-1985) instituiu uma ampla estrutura de repressão, baseada na ideologia Doutrina da Segurança Nacional e em valores morais conservadores. Essa repressão abateu-se diretamente sobre todos os setores oposicionistas, por meio da prática de torturas, desaparecimentos forçados, prisões ilegais, execuções sumárias, dentre outras graves violações de direitos humanos.

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No entanto, o autoritarismo também se valeu de uma ideologia da intolerância materializada na perseguição e tentativa de controle de grupos sociais tidos como desviantes, destacando-se as violências cometidas contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros (LGBT). A criação da figura de um “inimigo interno” valeu-se de contornos não apenas políticos, mas também morais pelo apelo que estes têm em uma sociedade marcada por um conservadorismo no campo dos costumes e da sexualidade.

LGBTs: um alvo privilegiado da ditadura

No Brasil, na época da ditadura, diversos foram os tipos de violações a direitos cometidas contra a população LGBT. De modo geral, é impossível compor um quadro preciso da extensão e da gravidade dessas violações, tanto pela ausência de uma documentação sistemática da violência (que tentou apagar seus próprios rastros) quanto pela ausência de denúncias (em virtude da autoculpabilização tão recorrente), ou mesmo pela invisibilidade dessa categoria de vítimas afetadas pela ação do Estado.

Mas uma lista possível de ser feita, ainda que incompleta, impressiona. Além da repressão política que se abateu sobre toda a sociedade, a comunidade LGBT foi um alvo privilegiado das violências: perseguição a travestis expostas ao olhar vigilante da repressão, sobretudo nos pontos de prostituição, onde eram enquadradas no crime de vadiagem (por não terem emprego com registro) ou de perturbação da ordem pública; censura ao teatro e às artes que simbolizavam de forma aberta as sexualidades dissidentes; homofobia e lesbofobia institucionalizadas nos órgãos de repressão e controle (inclusive contra oficiais das Forças Armadas, como ainda hoje acontece); expurgos de cargos públicos (como o de 15 diplomatas cassados do Itamaraty em 1969, sendo que sete deles o foram sob a justificativa explícita de “prática de homossexualismo, incontinência pública escandalosa”); difusão, pela imprensa, do preconceito contra os “desvios”, para reforçar a ideia de degeneração dos valores morais e o estereótipo do “inimigo interno” que justificava a repressão; desarticulação do então nascente movimento LGBT e dos seus meios de comunicação e de expressão (tais como o conhecido jornal O Lampião da Esquina), além da ausência de políticas de saúde pública adequadas para tratar das especificidades desses grupos sociais (como cirurgias de transgenitalização e políticas de combate à aids, que teve maior incidência nesse momento em determinados grupos etc).

Isso sem mencionar os casos de homofobia e de machismo, velados ou não, cometidos no interior do próprio campo da resistência à ditadura e da esquerda da época. Inspirados por um “ethos de masculinidade revolucionária”, que compreendia a homossexualidade como um “desvio pequeno-burguês” ou uma “doença” a ser curada, os grupos de luta armada reproduziram as normas prevalentes de gênero e sexualidade. Até mesmo cogitou-se, em uma dessas organizações revolucionárias, o justiçamento (execução deliberada pela direção da organização) de dois homens militantes que estavam tendo um caso amoroso dentro da prisão (para ler mais sobre isso, veja o artigo “‘Quem é o macho que quer me matar?’: homossexualidade masculina, masculinidade revolucionária e luta armada brasileira dos anos 1960 e 1970”, de James Green, no número 9 da Revista Anistia Política e Justiça de Transição).

Mas que fazer diante de tantas violências que marcam tão profundamente a sociedade, sua cultura e suas instituições?


Cidadania invisível

Depois de um contexto de graves e sistemáticas violações de direitos humanos, uma série de medidas pode e deve, segundo obrigações internacionais, ser implementada pelos Estados nacionais com o objetivo de reparar as violências cometidas no passado, evitando que essas práticas se repitam no presente e no futuro.

A esse repertório de medidas se convencionou chamar de “justiça de transição”. Basicamente, esse conceito envolve cinco dimensões, que constituem obrigações aos Estados: 1) Reparar os danos causados: oferta de reparações pecuniárias e simbólicas para os perseguidos políticos ou para as famílias dos mortos e desaparecidos; 2) Investigação dos fatos e responsabilização jurídica dos agentes violadores (direito à justiça): investigar, processar, apurando responsabilidades sobretudo dos agentes públicos e punir violadores de direitos humanos; 3) Direito à verdade e acesso a informações: revelar a verdade para vitimas, famílias e toda a sociedade, possibilitando a efetivação do direito à memória por meio de um acesso total e irrestrito aos arquivos e dados produzidos durante a ditadura (direito de acesso à informação e abertura completa dos arquivos públicos); 4) Políticas de memória e fortalecimento das instituições democráticas: cultivar uma memória pública e democrática, constituída a partir das narrativas das vítimas e com a participação direta destas. Nesse campo, outras medidas também são importantes, tais como retirar nomes de violadores dos direitos humanos de ruas e lugares públicos; e 5) Reforma das instituições: fazer esforços na mudança da cultura institucional e da dinâmica de atuação dos órgãos do Estado, sobretudo das forças de segurança, aparatos judiciais e outros organismos que foram utilizados pela repressão. Uma medida comum nesse ponto é afastar os criminosos de órgãos relacionados ao exercício da lei e de outras posições de autoridade, processo conhecido como expurgo ou lustração.

No entanto, a verdade é que as reflexões sobre a justiça de transição (e sobre os direitos humanos de modo geral) ainda são predominantemente construídas a partir de referenciais abstratos e descontextualizados. Usam-se termos como “cidadão”, “reconciliação”, “confiança cívica”, “identidade nacional”, entre outros, incapazes de dar conta da complexa rede de conflitos que caracterizam a vida social hoje.

Vale lembrar que não existe um “cidadão” abstrato como vítima de uma violência de Estado. Se esse cidadão for uma mulher negra e homossexual, sofrerá muito mais duramente os impactos da repressão institucionalizada e dos preconceitos assentados na sociedade.

No entanto, por geralmente trabalhar apenas na chave da oposição entre, de um lado, forças pró-democráticas e, de outro, forças antidemocráticas, esse olhar liberal e despolitizado sobre os direitos humanos esvaziados dos conflitos se mostra avesso a absorver as inúmeras clivagens e hierarquizações que caracterizam as desigualdades sociais atualmente.

Abordando quase que exclusivamente as violências políticas, as teorizações mais consagradas sobre o tema da justiça de transição desconsideram os marcadores sociais de diferença, elementos geralmente centrais nas diversas formas de operar da repressão. Assim, o cidadão parece não ter classe social, raça, gênero ou sexualidade.

Ainda de forma muito tímida, nota-se que têm surgido algumas reflexões que iluminam a repressão específica aos trabalhadores e ao movimento sindical organizado, incorporando, portanto, uma dimensão de classe. Um recorte etário, que privilegia as violações aos direitos de crianças e adolescentes, também tem sido pensado com maior atenção. Por sua vez, ainda em menor grau, o recorte de gênero tem aparecido em algumas experiências de Comissões da Verdade, enfocando como a condição feminina socialmente construída torna-se suporte para graves violações de direitos das mulheres.

Poucas, contudo, ainda são as tentativas de pesquisas que propõem esse cruzamento entre perseguição às chamadas “minorias” (sexuais e de gênero) e a repressão de regimes autoritários.


Por uma justiça de transição queer

As violações de direitos e as opressões no campo da sexualidade merecem também um olhar particular do ponto de vista do trabalho de memória e justiça. Esse debate merece entrar na agenda das discussões que marcam a reflexão em torno dos 50 anos do golpe militar e das continuidades autoritárias na democracia de hoje.

Quais são os instrumentos jurídicos e políticos disponíveis para efetivar a reparação desse grupo de vítimas? Como dar conta da particularidade da repressão moral, além da repressão política típica do autoritarismo, que o movimento LGBT sofreu no Brasil? Como prestigiar a diversidade e o reconhecimento da alteridade depois da ideologia da intolerância tão difundida e instrumentalizada pela ditadura brasileira? Que tipos de políticas públicas de justiça e de memória voltadas especificamente para a população LGBT e suas associações já foram implementadas? De que modo as Comissões da Verdade podem colaborar nesse processo de reparação? Essas são algumas das questões que precisam ser melhor exploradas no cruzamento entre ditadura e homossexualidade em nosso país.

É preciso lançar mão de uma perspectiva que confira centralidade à sexualidade na reinvenção democrática, enquanto uma dimensão fundamental da sociabilidade humana e que, enquanto tal, não escapa aos processos sociais e políticos que alimentam um ciclo de violências dirigido a grupos específicos por seus “desvios” em relação a uma normalidade instaurada e construída pelo regime autoritário.

Assim, não se trata de opor as violências do campo da sexualidade às perseguições políticas tradicionais, mas de investigar as articulações internas das formas de operar do poder repressor da ditadura brasileira, que manteve um controle político-social de diversas dimensões da vida pública e privada dos cidadãos.

Tampouco se trata de hierarquizar temas mais ou menos importantes ou pertinentes para os trabalhos de memória e justiça, como costuma acontecer quando a “lógica das possibilidades” se impõe à ação política democrática, ou seja, quando deixamos de tocar temas importantes porque uma tal “governabilidade” não pode ser colocada em risco.

Pode-se dizer que essa perspectiva mais ampla de uma “justiça de transição queer”, como aqui proposta, é importante por contribuir diretamente para a emergência de uma sociedade civil vigorosa, que pode se engajar na construção de uma democracia aberta às diversidades e com respeito aos direitos humanos, em especial às diferentes identidades e orientações sexuais – algo que ainda não temos hoje no Brasil, com um governo tão comprometido com a bancada evangélica e com outros setores conservadores da sociedade.

A derrubada de uma ditadura não pode ser confundida com a difícil e permanente tarefa de construção democrática. Esta demanda uma luta dirigida a desmantelar as estruturas do patriarcalismo, do racismo, do sexismo, da heteronormatividade e de outras formas de opressões de grupos vulneráveis.

Desse modo, as políticas de justiça de transição podem contribuir de maneira significativa ao apontar e evidenciar que a motivação das perseguições não foi apenas política em sentido estrito, mas também foi sexual em muitos casos. Esta dimensão, atualmente, ainda é diminuída ou silenciada, dada nossa dificuldade em enfrentar abertamente essas questões.

No entanto, nomear e jogar luz sobre essa dimensão moral da repressão, 30 anos após transição democrática, já é uma maneira de começar a avançar no combate dos preconceitos que marcam a sociedade brasileira ainda hoje. Hoje vivemos um momento privilegiado para traçar essa ponte entre o passado e o presente. E que seja antes tarde do que nunca.

Renan Honório Quinalha


(Revista Geni #4 - "Com quantos golpes se faz uma democracia?")

2 comentários:

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

O tema cidadania invisível é o retrato da atuação do cidadão. Poucos sabem sobre os direitos humanos, e quase ninguém sabe o que já foi violado. Manifestações de comemoração dos 50 anos do golpe militar neste ano de 2014, comemora atos contra os cidadãos, contra os direitos humanos de todos os civis, e pouco se fala na mídia aberta. Todo apoio a discussões como estas que mostram o empenho para avaliar formas de punição a quem violou o direito de se lutar pela cidadania! Vamos juntos nos informar e requerer a punição destes atores das atrocidades e vandalismos contra os direitos humanos. Os Militares, em 1964 foram a referência do vandalismo, por 20 anos, muitos ficando impunes ate hoje. Destruíram um patrimônio público imemorial. Mentes, corações e sonhos dos cidadãos artistas, trabalhadores e amantes da vida foram destruídos. Todo poder repressor da ditadura brasileira deve ser investigado e punido para que esta ditadura nunca mais veha acontecer!

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