"A imagem que temos no Chile de Gabriela Mistral [1889-1957] é a de uma estátua, uma mulher sem tonalidades, cinza", diz a diretora María Elena Wood, que exibe hoje no festival É Tudo Verdade "Loucasmulheres".
Pois a cineasta chilena surpreendeu-se quando encontrou, nos EUA, documentos até então não tornados públicos que revelam um quadro diferente da autora de "Poema do Chile" (1967) e única mulher latino-americana a ganhar um prêmio Nobel de Literatura.
A documentarista lera nos jornais que o legado de Mistral, guardado por sua companheira Doris Dana, morta em 2006, estava então com a sobrinha desta, aguardando para embarcar para o Chile.
"Eu precisava chegar a eles antes do governo chileno, senão aquilo iria --como de fato foi-- parar num arquivo e ficar lá abandonado", conta Wood.
Viajou então aos EUA e encontrou a parente de Dana, Doris Atkinson, que lhe deu acesso aos documentos. São centenas de cartas e cadernos, 35 fitas de áudio e vários filmes em 16 milímetros, que trazem os últimos dez anos de vida da poeta.
Nesse período, Mistral assumiu, ainda que de forma discreta, a relação homossexual com Dana.
"Foi por causa do fato de ela ter se tornado lésbica que o Chile preferiu engessar sua memória de outro modo. É um país conservador, só hoje o homossexualismo masculino começa a ser assumido, o feminino, nem pensar."
Nos registros, Mistral se mostra amorosa com a companheira, ciumenta e sexualmente interessada nela, o que destrói a outra imagem.
Segundo Wood, os chilenos preferem ver na nova-iorquina Doris Dana, mais de 30 anos mais jovem que a escritora, uma mulher aproveitadora, que a teria seduzido interessada em sua fama.
Os escritos contam uma história diferente ao revelar Mistral envolvida no jogo de sedução desde o início.
O relacionamento teria começado em 1948, quando Dana assistiu a uma palestra de Mistral e enviou-lhe uma carta dizendo-se também fã da obra de Thomas Mann.
Mistral, que recebera o Nobel em 1945, recuperava-se ainda de um duro golpe: o suicídio, no Brasil, de seu sobrinho e filho adotivo, Yin Yin, dois anos antes.
O rapaz de 18 anos tomou arsênico e morreu nos braços da poeta. Nas caixas achadas agora, há fotos de sua infância e cartas que Mistral escreveu a ele, depois de morto.
"Mistral nunca se recuperou totalmente e era uma mulher muito sozinha quando encontrou Dana. Viu nela a família que havia perdido."
As duas viajaram ao México e depois à Europa, até estabelecer-se em Long Island. Há imagens do casal em diferentes países e com amigos.
Já os filmes mostram parte do dia a dia em Long Island, cenas da infância de Dana e imagens desta no fim da vida, demonstrando sua tentativa --nunca atingida-- de organizar o acervo de Mistral.
Texto publicado na FSP, por Sylvia Colombo, caderno Ilustrada de 01/05/11
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