18.10.10

O corpo como campo de batalha

Eleições presidenciais seriam, ao menos em tese, momentos privilegiados para discutir pautas de modernização social. Entende-se por tal modernização o conjunto de procedimentos que visam adequar as leis às exigências de universalização de direitos.
Dentro desse conjunto de procedimentos, há, no entanto, um importante núcleo que visa modificar a maneira que o Estado procura impor normatividades ao corpo e à sexualidade. Como não poderia deixar de ser, tal núcleo está mais uma vez ausente do debate eleitoral. Os últimos 40 anos viram a paulatina institucionalização da consciência de que o Estado deve afastar-se, ao máximo, da tentação de legislar sobre os corpos e sobre a sexualidade de seus cidadãos.
Excetuando-se casos de abusos não consentidos do outro (como a violação) ou de práticas sexuais com aqueles que não são responsáveis por seus atos (como a pedofilia ou o abuso de doentes mentais), o Estado não teria nada a dizer a respeito de tais questões.
Essa indiferença necessária do Estado poderia abrir o espaço para a ampliação do processo de reconhecimento social das diferenças e de universalização de direitos. Esse foi um dos motores para que o aborto e a modificação da estrutura do casamento fossem aceitos em boa parte das sociedades democráticas. No entanto, o Brasil continua inexplicavelmente na contramão desse processo.
Peguemos o caso do aborto. Nos anos 80, uma artista plástica norte-americana, Bárbara Kruger, fez um belo cartaz pró-aborto onde se lia: "Seu corpo é um campo de batalha".
De fato, essa é a perspectiva correta para a abordagem do problema. É necessária muita imaginação para levar a sério o dogma de que um feto do tamanho de um grão de feijão, absolutamente dependente do corpo materno, teria o mesmo estatuto jurídico que uma pessoa.
A questão não concerne o "respeito à vida", até porque não estamos de acordo a respeito do que "vida", enquanto objeto a ser defendido pelo ordenamento jurídico, deva significar. Por não estarmos de acordo, não é possível que a sociedade civil seja refém de um conceito teológico de vida que os católicos procuram nos empurrar (até porque, boa parte das igrejas protestantes tem posição muito mais mitigada a respeito do aborto). A questão concerne, na verdade, o modo de intervenção estatal e de disciplina moral dos corpos.
Valeria ainda a pena lembrar que o aborto é e sempre será liberado para aqueles que poderão pagar por clínicas clandestinas. Esses sempre encontrarão um jeito para levá-lo adiante. Já os demais sempre continuarão abortando, pois eles já votaram pela liberação do aborto. Infelizmente, eles votaram com agulhas de tricô.
Por fim, sobre a questão a respeito do casamento entre homossexuais, é dificilmente compreensível que ela não esteja na pauta do debate eleitoral. Sua proibição estigmatiza uma parcela da população e cria constrangimentos sociais que nunca poderiam ser aceitos por uma sociedade que luta pela efetivação de princípios igualitários.

Texto escrito pelo professor no departamento de filosofia da USP Vladmir Safatle e publicado na Folha em 20/09/2010


3 comentários:

Adá disse...

é ou não é?
O Serra até falou sobre o aborto: falou que ele, ao lado de Jesus Cristo, são definitivamente contra! E só falou porque visa a ENORME parcela cristã do país porque o aborto e a legalização do casamento gay estão no PNH-3 (http://portal.mj.gov.br/sedh/pndh3/pndh3.pdf) criado no governo do PT e que vai contra os princípios fundamentalistas, graças à Deus!

Samuka disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Samuka disse...

Sobre o aborto, concordo, ele existe, ocorre e faz parte da realidade, ou seja, quem tem grana faz de boa, quem não tem passa por riscos de saúde, de vida e etc.
Quem é contra o aborto não vai ser obrigado a fazê-lo caso seja liberado. E sobre o casamento gay, só vai se casar com um gay quem quiser oras!
O que acontece é que a vontade de um seguimento da sociedade impede a liberdade de outros cidadãos.
E uma outra coisa que me irrtita é a confusão que muitos seguimentos religiosos fundamentalistas fazem a respeito de casamento religioso e casamento civil, o que acaba distorcendo o que de fato está em pauta.

Portanto, quem é contra o aborto ou o casamento gay, tudo bem, apenas não faça um aborto e nem se case com um gay! Só não queiram decidir isso pelos outros!

3 Comentários
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