“Morro de amor por você...”
Não se engane pelo título, “Je meurs d’amour pour toi...” (Ed. Tallandier, 2008) não é mais um livro água-açúcar com enredo pré-formatado, desses feitos a rodo. A excelente introdução assinada pela historiadora Élisabeth Badinter demonstra o significado e as implicações do que se podem ler nas 195 cartas trocadas entre a princesa Isabel de Bourbon-Parma e arquiduquesa Maria-Cristina entre 1760 e 1763. Por ser irmã do príncipe Joseph II, ou seja, irmã do marido de Isabel, a arquiduquesa é sempre tratada como “Irmã” nas cartas amorosas da princesa. De fato, nelas se notam as formas oficiais de tratamento e as pequenas variações que se permitem em cada situação, as relações hierárquicas, elementos da educação e da vida nas ricas cortes européias do século XVIII, o cotidiano de uma princesa. Mas se observa com ainda maior nitidez o amor, talvez mesmo a veneração, da princesa Isabela pela arquiduquesa Maria-Cristina.
Finalmente, aprende-se sobre a princesa Isabela que, como nos demonstram inúmeros relatos recolhidos pela citada historiadora, parece ter sido adorada pelas autoridades e pelos funcionários das quatro cortes onde viveu, como muito poucas figuras da nobreza. De fato, além de dominar as quatro línguas dos países onde habitou, o espanhol, o francês, o italiano e o alemão, esta personagem rara recebeu uma educação que por muitos de sua época foi considerada perfeita. Aprendeu latim e religião, como era usual, mas também estratégia militar e filosofia, tendo como professores ninguém menos que o cavaleiro Auguste de Keralio, “dotado de uma notável cultura científica”, e o abade e filósofo Condillac, fonte de inspiração de todo o iluminismo francês e destacadamente de Diderot, d’Alembert e Rousseau. (Foi por conta do primeiro que o imperador da Áustria criou uma Escola Militar nos moldes franceses e foi sob a influência decisiva deste segundo que o príncipe Joseph II foi convencido a tomar uma das medidas mais inovadoras da época: construir um sistema público de educação que comportasse o acesso de todos os estamentos sociais). Mas Isabela teve também os melhores preceptores de história, literatura, desenho, pintura e música, tendo alcançado a excelência tanto no violino quanto no clavecin e no canto. A família real costumava dar concertos privados, em que Joseph tocava piano, Maria-Cristina violoncelo e Isabela violino. A admiração por Isabela era tão grande que quando a família Mozart foi se apresentar em Schönbrunn em outubro de 1762, o imperador fez questão de fazê-la testemunhar a habilidade técnica e os encantos da princesa.
As cartas da princesa Isabela – quem, com tão poucos anos de vida (ela morreu com 22 anos), chegou a publicar estudos e tratados com um talento fora do comum, hoje considerados não só ousados, como teoricamente densos – por si sós não dariam idéia de quem era essa personagem histórica excepcional. Elas não são o registro da jovem poliglota, de inteligência aguda e de saber enciclopédico; de uma das mais “autênticas intelectuais da época, [pertencente] ao clube bastante fechado de princesas filósofas”, como dirá Badinter; da pensadora independente com idéias que nos lembram muito as posições feministas dos séculos seguintes – mas da jovem, talvez um pouco manipuladora, algumas vezes mórbida, mas, sobretudo, perdida de amor (que não lhe impediu de dar suas puladinhas de cerca, cf. abaixo). De um amor secreto que só terminaria com sua morte. Ou, ao contrário, como ela afirmará na sua penúltima carta: uma morte devida ao amor, je meurs d’amours pour toi...
Trechos de cartas:
“Para o último dia de Carnaval, é bem preciso procurar alguns prazeres. O único que posso ter é de conversar com você. (...) Eu te adoro, e apesar de todos os atrativos da sua nova “funcionária de quarto”, que você sabe ser sua rival, você, no entanto, a supera sempre. É preciso, porém, que eu reconheça ter lhe feito muitas infidelidades ontem no baile. Como poderia ser diferente? Nele entrando, percebo uma donzela bonita como Vênus: ela tinha os traços, a beleza e as graças desta última. Gorda como um porquinho, uma bocarra, um nariz que anuncia quanto ela tem de espírito, os olhos um pouco ariscos... a este retrato, reconheça a Turkheim. Eu continuo e minha vista é entrecortada pelo porte majestoso e nobre de um jovem objeto. As rugas de sua fronte, as marcas de sua face cobertas por um pé de branco [?], o ar orgulhoso e malicioso, grande e magro. Você poderia desconhecer sua amiga íntima, sua vizinha? Meu coração não pôde resistir a tantos atrativos. Olhares ternos fizeram despertar meus sentimentos e reconheço que ainda neste momento me sinto emocionada. Adeus, pois sinto que se encontro ainda a terceira que levamos conosco eu não seria mais dona de mim mesma; e você poderia perder demais meus olhos se eu pensasse nessas obras de arte. Adeus ainda uma vez, eu te beijo de todo meu coração” (carta 40, 3 de fevereiro de 1761, livre tradução).
“Cá estou eu ainda, muito cruel Irmã, na inquietude que me causa a leitura que você faz, ou deve ter feito [da minha carta] (...). Eu não posso viver enquanto estou inquieta. Não tenho mais a liberdade de pensar em nada, a não ser que estou apaixonada por você como uma louca. Se eu sabia por quê? Porque sua crueldade é tão grande que não se deveria te amar? Mas não se pode se defender disso quando se conhece você. Adeus, estou tão louca que nem sei o que faço, mas como acabo de ler um livro muito sábio que diz que a loucura é um bem, me consolo e lhe deixo um beijo” (carta 46, março de 1761, l.t.).
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